quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

"Conversa de botas batidas"

"Por que será que a minha cabeça sempre me pareceu meio desaparafusada?"
_ Deve ser por que ela é desaparafusada mesmo, mas isso não quer dizer algo tão ruim.
"Como não quer dizer algo tão ruim? Estamos falando da minha cabeça, aliás, não somente disso; você sabe o tanto de problemas que uma cabeça desaparafusada pode trazer?"
_ Tudo bem. Vamos esclarecer: Uma cabeça desaparafusada quer dizer que você tem uma mente um pouco fora do eixo, pensamentos comuns não fazem muito o seu gênero, acertei?
"É... Acho que sim... Na verdade você tem toda razão. Sabe que quando eu era criança, achava que só existiam dois países no mundo, o Brasil e o Japão; vê se pode, eu ignorava a existência do resto do mundo e achava que eu era muito esperta por me dar conta de que existia um outro país muito distante; quando minha mãe me deixava sozinha na casa da minha vó, eu convidava a Dona Maura pra brincar de adivinhação comigo, essa era uma sobrinha da minha vó, tinha idade avançada e não tinha muito estudo, então eu perguntava presunçosa: "Qual o nome de um país com a letra J?" Ela, claro, nunca acertava, até porque eu nem dava muito tempo pra pensar, dizia logo: "É o Japão!" E sorria vitoriosa. Ilusões infantis.
_ Sem essas tais ilusões infantis a vida não seria a mesma; já imaginou uma pessoa sem histórias da infância pra contar?
"É, mas as coisas certas vezes deveriam ser menos traumáticas. Por exemplo: Eu apanhei quando resolvi voltar sozinha do colégio pra casa; minha irmã não entendeu que eu estava no início do meu convívio com o mundo, precisava da experiência. Eu fazia a quarta série se não estou enganada, todos os meus coleguinhas já iam pra casa sozinhos, eu queria tentar e me sairia muito bem se ela não tivesse  me encontrado a três quadras de casa. Não sei se tem algo a ver, mas depois disso comecei a ter medo de ir pra lugares muito distantes, achava que não conseguiria voltar.
_ Isso deve ter acontecido com várias crianças da mesma idade que você em algum momento, mas o fato é que você deve ter uma facilidade pra desenvolver traumas; coisa que sua família não deveria saber.
"E ainda não sabem" (risos)
"Em resposta a todas as maluquices que se formavam na minha mente após cada experiência, eu mudei totalmente meu comportamento quando passei pra quinta série; mudei de colégio, de letra, de modo como me vestia, quase tudo. Parece até que antes disso eu era outra pessoa.
_ Você tava crescendo e ganhando força pra ser quem realmente tinha que ser.
"Mas será que a gente sabe mesmo quem realmente tem que ser?"
_ Bem, essa é uma boa pergunta. Acho que talvez no segundo que antecede a morte, cada um sabe quem deveria ter sido, nossa história vai sendo escrita de forma imperfeita, sem garantias de acertos, mas deve existir algo que nos leva a cada escolha por algum motivo.
"Eu penso nisso todos os dias, se existe mesmo esse algo ou alguém, alguma coisa que guia nossas escolhas, nossos caminhos de algum modo. O que seria Deus no meio de nós? Por que pessoas morrem em circunstâncias tão inesperadaas, às vezes deixando no ar algo como uma indagação, uma afronta às nossas certezas e incertezas; pra mim a fragilidade do ser humano é algo desleal; desleal com a nossa ânsia de vida."
_ Será que se o ser humano não fosse tão fragil ele seria pior do que vem mostrando ser? Será que a certeza de sua força não seria um estimulo maior para as maldades e a destruição que vem sendo cultivada? Se mesmo com a vida sendo posta em "xeque" diariamente o homem se auto-afirma o tempo todo, imagine como seria se sua natureza não fosse passageira.
"Eu estou me referindo a maioria que não tem esse poder de destruição nas mãos, a maioria que sai de casa pra trabalhar duro diariamente, que luta pra manter os filhos em um bom colégio, que acredita no futuro."
_Existem respostas que talvez nunca possamos ter.
"Por que então nos ensinaram a perguntar?"